A esperança

Apesar da longa viagem, Muhammad não aparentava estar cansado. Ao contrário, queria contar as novidades aos seus amigos. E deles queria saber das coisas do Brasil. Escutara que a situação brasileira estava caótica, com a pandemia se espalhando de forma incontrolável, os hospitais em colapso e o negacionismo oficializado como resposta curativa. Allah, o seu pai, estava muito preocupado com o clima de ódio que tomava conta da política, das famílias e das pessoas,  impedindo uma reação organizada e unificada. Não compreendia esta mudança de humor, pois sabia que os mulçumanos – brasileiros ou não – sempre foram bem acolhidos no Brasil, convivendo em plena harmonia com as demais religiões.

– Você pode até ter razão, Muhammad, mas não podemos generalizar em termos de acolhida. – aparteou Oxalá. – Ainda somos agredidos em nossa religiosidade. Nossos cultos e terreiros continuam sendo violados.

– Ninguém está entendendo – concordou Emanuel. – Aqui é o país com a maior população católica do mundo e uma das Nações com o maior número de cristãos evangélicos. Será que esqueceram que são “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”?

– Allah também tem dito a mesma coisa do nosso povo – suspirou Muhammad. – Mas eu queria contar a vocês do meu sonho.

– Conte! Conte! Conte!  – brincou Jaci. – O mundo dos sonhos pertence à noite que ilumino.

– Vamos a ele! – gargalhou Muhammad. – Eu sonhei que estava cavalgando o corcel celestial, el-Buruq, com o anjo Gabriel, até o monte do Templo, para encontrar Abraão, Moisés e você, Emanuel, e daí eu acendia ao trono de Deus passando pelos sete céus.

– Em Jerusalém? – quis saber Jaci.

– Claro que em Jerusalém – respondeu, automaticamente, Muhammad.

– “E o Anjo me levou em espírito até um grande e alto monte. E me mostrou a Cidade Santa, Jerusalém que descia do céu, de junto de Deus, com a glória de Deus” – recitou Emanuel.

– Apocalipse 21, 10-11.18-21? – perguntou Jaci.

– Agora entendi a razão de Jerusalém também fazer parte de sua história, Muhammad – comentou Oxalá. – Não sem motivo ela é a Terra Santa dos cristãos, dos judeus e os dos mulçumanos.

– A Casa Comum, não é? – cutucou Jaci. – Não é assim que o seu papa fala, Emanuel?

– Deveria ser assim compreendida, Jaci – respondeu, Emanuel. – Mas, infelizmente, já foi palco de muitas guerras tidas como “Santas” no passado. E ainda segue, lamentavelmente, com a porta fechada para irmãos e irmãs, especialmente para aquelas pessoas que mais precisam ser abrigadas.

– Paciência! – suspirou Muhammad. – “Deus não muda o destino de um povo até que o povo mude o que tem na alma”.

– Essa é a receita, Muhammad! – concluiu Oxalá. – O povo não deveria aceitar que o desprezo à vida é algo normal, que o ódio é mensagem divina ou que os seus governantes têm o direito de pactuar com a morte. Não há esperança nessa forma de pensar.

– Acho que esse povo não aprendeu a lição do seu santo Agostinho, Emanuel – seguiu,  provocante e sapeca, Jaci. – “A esperança tem duas filhas lindas. A indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem a mudá-las”.

– “Para aquele que está entre os vivos, há esperança…” – sorriu, enigmático, Emanuel. – É nossa tarefa não permitir que se deixe morrer..

– Axé! – saudou Oxalá. – E que assim coletivamente seja.

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