Iara pede ajuda

Jaci despertou aflita. Parecia que uma irritada tempestade forçava, barulhenta, o ingresso em sua casa. Praguejou por ter sido interrompida no seu sagrado direito ao descanso diário. Ainda estava cansada pela noite agitada em razão de dilúvios, enchentes, desabamentos de morros e casas. A sua mente permanecia insone, atormentada com os gritos noturnos das pessoas que lutaram para que as furiosas águas não arrastassem para a morte os seus entes queridos. Certamente o seu irmão Guaracy – imaginou ela – estava por trás daquela inoportuna quebra do pacto secular que os fazia revezar na vigilância das coisas terrenas. Ele cuidava do dia. Ela zelava pela noite. Não era a primeira vez que assim fazia, mas nunca ocorrera no iniciar do dia. As ocasiões fortuitas estavam reservadas para o final da tarde ou quando Jaci, sapeca, eclipsava o brilho de Guaracy sobre a terra.

Acalmou-se ao descobrir a razão daquele alvoroço matinal. Era a sua prima Iara quem, agitada, batia em sua porta. Tranquilizou-se ao percebeu que Tupã a aguardava.  Deixou-a entrar. A pequena menina-lua percebeu que já estavam em sua  casa outras pessoas, notadamente Jeová, Olurum, Guaraci, Iansã, Xangô e Iemanjá. Compreendeu que a reunião era muito importante, certamente relacionada com as tragédias ocorridas durante a noite e que ainda não cessaram. Tupã acomodou Iara no centro da mesa, ao lado de Iemanjá. Convidou a ainda sonolenta Jaci para sentar ao seu lado e deu início à reunião.

– Que a Sabedoria nos ilumine nesta reunião! – saudou Tupã. – Convidei vocês para que possamos compreender o que se passa na Terra! Antes os incêndios estavam destruindo as florestas, depois as águas devastaram as cidades e agora falta a própria água como fonte de vida e energia. Tenho escutado súplicas e acusações sobre as nossas intenções.

– Sei que muitos me culpam pela violência provocada pelos meus rios quando passaram pelas ruas das cidades – interrompeu Iara. – Deve ser por isso que esperavam por mim.

– Calma, Iara! Eu também fui convocada para a reunião – brincou Iemanjá, segurando, afetuosamente, as mãos da agitada deusa dos rios. – E desta vez os meus mares não provocaram nenhuma tsunami.

– Como ficar calma, Iemanjá? – indagou Iara. – Esse povo não para de jogar lixo, esgotos e todo tipo de poluição em minhas águas. Derrubam as árvores que impedem que as areias das margens caiam sobre mim. Fazem represas que não deixam que eu me encontre com Iemanjá. Construíram asfalto sobre mim, impedindo-me de curtir o brilho de Guaraci e admirar a beleza de Jaci. E eu sou a culpada quando as águas se revoltam de tanta agressão sofrida? Ou quando secam nos açudes e reservatórios?

– Não Iara! Ninguém aqui está culpando você – apaziguou Jeová. – Sabemos que os homens têm dificuldade de apreender. Lembre-se de que já pedi a sua colaboração quando escolhi Noé para construir uma arca repleta de amor e esperança.

– Será que precisaremos de outro dilúvio para que eles aprendam a respeitar a Natureza que criamos para eles mesmos? Vocês viram o que fizeram com as praias nordestinas? – interveio Xangô – Se é para mandar raios sobre eles até que aprendam, deixe comigo.

– A proposta é tentadora, Xangô! Você sabe que de raios e tempestades eu entendo bem – interrompeu, carinhosamente, Tupã. – Eu sei que todos estão se queixando da quantidade de poluição que os seres humanos estão produzindo. Mas acho que ainda não é tempo para guerrearmos. Devemos mandar avisos como tem feito Iara e Iemanjá, para analisarmos se aprenderam.

– Sábio Pai! Poderemos liberar as ondas de calor que tenho contido com muito esforço – concordou Guaraci. – Assim forçaremos que os cientistas tenham chance de convencer as comunidades sobre os efeitos da poluição no aquecimento global.

– Acho uma boa ideia, meu Sol – somou-se Iara. – O problema do Brasil se agravou mais ainda, agora que o negacionismo ambiental ganhou chancela oficial. Os órgãos científicos e de fiscalização estão sendo fechados por inanição econômica ou canetadas políticas. Não consigo, sozinha, enfrentá-los. Eu preciso da ajuda de todos vocês.

– E esse é o sentido desta reunião emergencial, Iara! Sabemos que eles gostam mais do verde dos negócios, do que do verde da natureza – acresceu Guaraci. – Eles precisam ser parados com urgência. Nossos povos estão sendo massacrados e não temos mais tempo, os garimpos avançam, as florestas estão sendo devastadas e exportadas ilegalmente…

– Mas não podemos desistir da humanidade. A ciência não é nossa inimiga. É também caminho para que encontremos respostas para tantas dúvidas que surgem. Vamos iluminar e elevar os espíritos deles para que compreendam que o Universo é a nossa Casa Comum e que todos têm a obrigação de zelar por eles – ponderou Jeová.

– Jeová e a sua compaixão infinita! – sorriu Olurum. – Realmente não podemos desistir da humanidade. Mas não podemos deixar de mandar os nossos alertas em forma de eventos naturais, ainda que possam parecer terríveis. É a única forma de compreenderem que estão destruindo o planeta. O amor à Natureza precisa ser ensinado, por mais dolorosa que seja a lição.

– Parece-me que estamos de acordo – encerrou Tupã. – Sigamos protegendo a Natureza, sem abrirmos mão de apontarmos os melhores caminhos para a humanidade, rezando para que um dia aprendam a caminhar sozinhos.

Cezar Britto

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