O tempo das máscaras caídas

– Èpa Bàbá! – cumprimentou alegremente Jaci, ao encontrar Oxalá em companhia de Oxum, que, carinhosamente, segurava um belo espelho de ouro na frente de seu amigo  – Está lindo, meu “Rei do Pano Branco”!

– Oi, Jaci! – fingiu-se zangada Oxum. – O brilho de Oxalá está tão grande que você não notou que estou aqui?

– Ora iê iê ô! Impossível não notar você, amiga! – gargalhou Jaci, fazendo uma saudação corporal com as mãos abertas na altura da barriga. – Ainda mais com esse chiquérrimo vestido amarelo-ouro. E o seu colar que brilha mais do que o meu irmão Guaraci? Um dia vou pedir emprestado e deixá-lo com inveja.

– Sempre gentil, minha pequena Lua – retribuiu, vaidosa, Oxum. – Hoje o nosso Oxaguiam vai ser saudado em minha Casa, mas ele está se recusando a usar o presente que Iansã mandou.

– Não é isso, Oxum – explicou, sorrindo, Oxalá. – Eu sei que a máscara que a Iansã  me presenteou é divina e que ela pode jogar um raio em minha cabeça se eu não a usar.

– Se você quer correr o risco… – brincou Oxum. – Mas não me envolva em sua teimosia. Eu conheço o gênio passional na minha orixá.

–  Jaci! Você mesma não ficou encantada quando aquele indiano nos disse que “o melhor argumento é o exemplo”? – falou Oxalá, em busca do apoio de sua amiga. – Eu acho importante darmos exemplos em lugares públicos. Mesmo que sejamos portadores da imunidade divina, as pessoas que criamos não são. A máscara que ela escolheu é muito aberta e não protegeria da covid quem a usasse.

–  “Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver” – cantarolou Jaci. – E viva Gandhi. E viva Tom Jobim!

– O exemplo é tudo! – concordou Oxum. – Não se pode propor ao grupo o que não se é capaz de fazer. Você está com a razão. Iansã vai compreender o seu gesto Oxaguiam.

– O problema da humanidade é que ela vive na plenitude do “Tempo das Máscaras Caídas” – ouviu-se a voz de Emanuel, que sempre gostava de exercer a sua onisciência e onipresença. – As pessoas estão tirando as máscaras civilizatórias e espirituais, passando a exibir faces que achávamos superadas pelo tempo. A outra face, que dei como exemplo de resposta humanista, está agora encoberta pela vergonhosa maldade explícita.

– Realmente Emanuel! – concordou Oxalá. – Exu me disse que está impressionado como as pessoas externam, sem camuflagem ou receio de reprimendas, rostos de ódio, intolerância, racismo, homofobia, misoginia, preconceito e variadas expressões de indisfarçada violência.

– E isso tem ocorrido em várias ambiências – reforçou Emanuel. – As máscaras têm caído nos lares, no trabalho e entre amigos até então inseparáveis. Até mesmo em lugares que deveriam dar o exemplo que Jaci falou ao lembrar do Mahatma indiano. Vários governantes, magistrados, parlamentares, religiosos, profissionais liberais, jornalistas se esmeram em externar as faces caídas, em uma espécie de competição em que todas a pessoas brigam e saem derrotadas.

– Por outro lado, as máscaras caídas passaram a revelar o que elas efetivamente são. Os governantes assumem, sem disfarce, a arrogância que antes dissimulavam em belos discursos democráticos – interveio Oxum, com uma voz que mesclava beleza, sensibilidade e experiência com o mundo material. – Essas pessoas não mais escondem o que pensam sobre os pobres, os trabalhadores, os excluídos e as políticas sociais que geraram inclusão, solidariedade e igualdade. Não ligam se serão enxergadas como kiumbas, eguns, kaagere, obsessores, trevosos, demônios ou monstros.

– Meu Pai disse em Efésios que “A nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” – observou Emanuel. – E eu já adverti que “Todo reino dividido contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá”.

– Realmente esse clima de ódio é, simultaneamente, implosivo e explosivo – concordou Oxalá. – Eu sei que essa turma tem sobrevivido por décadas. A diferença está nessa exibição vaidosa, sem maquiagem e vitoriosa no seu assumido despudor.

– Diferente de você Oxalá, tem gente que nem a máscara que protege a sua própria saúde e de familiares quer usar – suspirou Oxum. – Mas estou estranhando o seu silêncio Jaci. O que aconteceu?

– Não sou de silêncios mesmo, amiga! – sorriu Jaci. – Mas essa conversa me fez lembrar de um velho conselho de Sun Tzu. Você lembra dele, Oxalá?

– Claro que sim. Ogum não perde a oportunidade de falar da arte da guerra do general chinês – assentiu Oxalá, para depois citar de cor uma da observação do sábio estrategista. – “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas”.

– Aûîebeté, Oxalá!  – exclamou Jaci, radiante, agradecendo a intervenção de seu amigo. – Se os inimigos se exibirem sem máscaras, a humanidade saberá melhor  combater os seus ataques. Não mais sendo iludida por discursos ou gestos de desleais amizades, ela evitará acreditar em falsos Messias. Conhecendo o que efetivamente arquitetam, não mais permitirá que sigam arrogantes os falsários. Revelados os rostos da insensibilidade que ostentam, não haverá recusa em enfrentá-los. Conhecendo-se e conhecendo-os, a humanidade pode esperançar e vencer.

– Tupã t’-o-î-potar (Deus queira!) – saudaram, coletivamente, Oxalá e Emanuel, em tupi.

Cezar Britto

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